6.11.06

Verdades inconvenientes



Por sugestão do Agreste Avena e também por curiosidade fui ver o documentário do Al Gore An inconvenient truth.

O documentário cheira um bocadinho a campanha partidária. Al Gore tem um longo caminho pela frente, em particular tendo em conta o desgaste da sua imagem durante os tempos da administração Clinton, em que foi classificado de político aborrecido e de pouco carisma. Provavelmente terá como rival a bem mais popular imagem Hillary Clinton que tem aparecido recorrentemente nos media por causa da campanha para as eleições a meio-mandato esta terça-feira.

A reciclagem da image de Gore está bem montada, em intervalos reflexivos ele apresenta o seu lado humano, sofreu várias adversidades ao longo da vida e elas são motivo de reflexão para o tema do filme. A matéria principal está assente numa série de conferências em que Gore mostra o seu lado divertido, capaz de cativar a atenção do público durante as apresentações, e fortemente empenhado numa questão polémica e difícil de fazer passar numa nação em que a competitividade é a chave do seu sucesso.

Apesar de me ir sentindo desagradado ao longo do filme por ter pago para ver campanha política dos USA, o documentário transmite uma mensagem importante de uma forma compreensível e com uma argumentação abundante. O tema das mudanças climáticas é importante pois é claro que a humanidade chegou a uma fase em que tem poder para influenciar o equilíbrio natural do planeta em que vive, e tem que reflectir sobre as consequências do uso desse poder, e agir de forma a conservar toda a riqueza de um lugar que é único no espaço que nos é permitido observar actualmente... Já para não falar em manter esse lugar habitável.

Parece-me claro que neste contexto, e de forma a atingir o maior público possível e cingir a duração do filme a algo que se possa compreender em menos do tempo de uma tese de doutoramento, a argumentação tem que ser simplificada. Mas eu acho que não se podem deixar de citar as fontes, talvez tivesse sido mais indicado pôr os próprios especialistas a falar e confrontá-los com opiniões diferentes.

No genérico final é apresentado o endereço de um site (climatecrisis) criado como anexo ao filme que apresenta algumas referências (reputadas, tanto quanto uma pesquisa na net permite verificar) mas o material apresentado no filme não é relacionado com o contexto dos artigos mencionados.

Tomo como exemplo a concordância entre a variação da concentração de dióxido de carbono na atmosfera e a temperatura global (média de medições efectuadas à superfície, imagino). No filme apresentam-se duas curvas que são surpreendentemente semelhantes, as variações de CO2 acompanham quase perfeitamente a temperatura.


Procurei na Net algumas referências sobre o assunto. De facto pegando em dados recolhidos em glaciares da Antárctida (em bolhinhas de ar capturadas durante a congelação) as duas curvas são extraordinariente coincidentes. Só que, como é discutido aqui, a correlação não significa causalidade, e uma observação mais detalhada mostra que o aumento em C02 está sistematicamente desfasado de cerca de 800 anos relativmente ao aumento de temperatura. No gráfico este facto é pouco perceptível porque representa uma escala de tempo de 400 000 anos. Isto mostra que nestas escalas de tempo o aumento de C02 é um efeito e não uma causa do aumento de temperatura, e que portanto estes daos não ajudam muito na interpretação da situação presente.


No passado, a atmosfera encontrava-se forçada por factores externos, ou seja as variações de energia proveniente do sol, principalmente porque a distância entre a terra e o sol variam, e a inclinação da terra também varia. A concentração de CO2 ajustava-se devido a esta forçagem. A questão actual é saber o que acontece quando se força a concentração de C02 em vez da luz que atinge o planeta. A resposta é complicada porque há muitos factores em jogo que se adaptam mutuamente. Há vários factores que influenciam o clima e alguns deles, também relacionados com a poluição podem ter efeitos inversos na temperatura. No entanto, os dados actuais mostram um crescimento simultâneo dos dois índices, e apesar de ainda serem recentes são razão de preocupação.

Outro aspecto que achei interessante foi a análise feita a uma amostra de artigos científicos (quase 1000), em que nenhum deles aponta para causas naturais do aquecimento global, o que parece estranho tendo em conta que se houve frequentemente falar de dissidências em relação ao aquecimento global antropogénico. Suponho que esta análise foi feita de uma forma sistemática, mas mais uma vez não encontrei provas disso no filme. Neste artigo da wikipedia descobrem-se alguns cientistas dissidentes, muito mais isolados do que os que acreditam em causas antropogénicas.

Hoje em dia há uma forma simples de fazer uma ideia sobre este facto, é ir à procura em arquivos de artigos na internet sobre um determinado tema. Por exemplo no Google Scholar, procurar por "global warming". Olhando para o título e resumo dos artigos é possível ter uma ideia do ponto de vista dos autores, e defacto aparece muito pouco material que fale claramente de causas naturais para o aquecimento global. Muitos parecem não se pronunciar sobre o tema.

Pode-se pensar que a distrbuição dos artigos publicados em revistas conceituadas sejam afectados pela visão maioritária. Para esclarecer este tema pode-se procurar num arquivo científico onde estão incluidos artigos que foram rejeitados, em física por exemplo no arXiv. Aqui encontram-se facilmente alguns artigos dissidentes, mas numa proporção não muito alta, muito abaixo da proporção de artigos dissidentes na imprensa geral que é referida no filme (57%, se não me engano).

Em conclusão parece-me que o documentário teria a ganhar com maior precisão científica, o uso mais frequente de fontes originais e já agora, distanciar-se da propaganda política. No entanto, no meu caso acho que fez um bom trabalho em alertar para certos dados que não conhecia. Uma opinião de especialistas pode ser encontrada aqui.

É ainda uma boa notícia que finalmente este tema seja abordado tão a fundo na campanha política dos Estados Unidos, significa que os políticos sentem que é um tema que sensibiliza os eleitores. A ser verdade talvez finalmente a nação com maior produção de dióxido de carbono finalmente ratifique o protocolo de Kyoto.

Mais difícil será sensibilizar a opinião pública de que para ter efeitos a nível global é preciso que que os 4/5 da população mundial que vivem em economias emergentes utilizem uma via diferente para alcançar as economias ocidentais. E que será injusto que sejam forçadas a pagar sozinhas os custos adicionais de um desenvolvimento baseado em energias alternativas, enquanto as economias ocidentais puderam beneficiar de um progresso baseado em combustíveis fósseis, conversão de florestas em áreas industriais e agrícolas, etc.

Para terminar deixo dois links onde me parece que há uma discussão profunda e bem argumentada deste tema:

RealClimate, um site bem explicado de investigadores em ciências do clima com abundantes referências científicas

Relatório do Intergovernamental Panel on Climate Change

2 Comments:

Blogger Zèd said...

Só um pequeno comentário em relação ao CO2 e o aumento da temperatura. Não me parece incoerente que no passado o aumento do CO2 fosse uma consequência do aumento da temperatura, e que por isso apareça desfazada, esse aumento do CO2 não foi causado pelo homem. Não é de excluir que dentro de determinados limites esse aumento de CO2 não tenha tido um efeito de feed-back e aumentando por sua vez a temperatura, levando ao efeito ciclico que se observa. O problema é que os níveis actuais de CO2 ultrapassaram já os máximos alguma vez ocorridos, e como podem de facto causar um efeito de estufa podem levar a um aquecimento superior ao alguma tenha acontecido no passado.

9:26 AM  
Blogger Andre Goios said...

Sim isso é verdade, nos últimos 400 mil anos a concentração de C02 na atmosfera variou entre 180 e 280 partes por milhão ao passo que em 2004 ultrapassou 380 ppm. E está a aumentar a um ritmo crescente. Vendo que os dois crescem mais ou menos a passo nos últimos 40 anos, acho que o melhor é desconfiar que algo está errado.
Eu não arrisco é avançar com uma explicação tão simples, e acho que os climatologistas também não.

10:27 AM  

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